Montagem

Ópera gay ‘Peter Grimes’ replica o tribunal das redes no drama de um pescador

A partir desta sexta-feira, a obra-prima de Britten será executada em três récitas durante o Festival Amazonas de Ópera, que acontece em Manaus desde o fim de abril.

Ópera gay 'Peter Grimes' replica o tribunal das redes no drama de um pescador

Peter Grimes" surge do reencontro de Britten com o lugar onde passou a infância. — Foto:Reprodução/Financial

MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – Na praia de Aldeburgh, cidade do condado inglês de Suffolk, a escultura “The Scallop”, feita em 2003 pela artista britânica Maggi Hambling, se ergue na paisagem de cascalho e mar. Com quatro metros de altura, a obra de aço em forma de concha traz no topo o dizer “ouço aquelas vozes que nunca serão afogadas”. A frase vem da ópera “Peter Grimes”, de 1945, composta por Benjamin Britten, ilustre cidadão de Aldeburgh.

A partir desta sexta-feira, a obra-prima de Britten será executada em três récitas durante o Festival Amazonas de Ópera, que acontece em Manaus desde o fim de abril. O diretor colombiano Pedro Salazar, de 47 anos, teve como primeiro desafio transpor a atmosfera misteriosa que encontrou em viagem a Aldeburgh para a realidade latino-americana. “Essa é uma ópera sobre como a violência se desenvolve em uma comunidade”, ele define.

“Peter Grimes” surge do reencontro de Britten com o lugar onde passou a infância. Em 1941, o compositor foi morar na Califórnia, nos Estados Unidos, com o marido, o tenor Peter Pears. Ali, distantes da Segunda Guerra Mundial, eles leram o poema narrativo “The Borough”, ou o vilarejo, publicado em 1810 por George Crabbe. O poema conta a história de Peter Grimes, um pescador de Aldeburgh –onde Crabbe também nasceu–, acusado de matar um jovem aprendiz.

Britten logo se identificou com a tragédia e resolveu adaptar a história para os palcos. O libreto de Montagu Slater começa com um inquérito, com a presença do pescador e de toda a comunidade. O médico legista Swallow afirma que a morte do rapaz foi acidental, mas o vilarejo passa a perseguir Grimes, mesmo sem provas do assassinato. Durante os três atos da trama, tudo serve de motivo para excluir o acusado, inclusive sua estranha personalidade e o fato de nunca ter se casado.

Salazar lança um olhar arguto para o libreto. Em sua montagem, o balneário continua a imprimir mistério à tragédia, que não revela vilões ou mocinhos. Ali está a praia enevoada, no cenário do colombiano Julián Hoyos, concebido para o teatro Amazonas. A iluminação de Fábio Retti, por seu turno, calibra a paisagem, com o tom azul-gris do mar inglês. Já o bar, como se construído em palafitas, lembra que o drama de Grimes pode estar no presente –e no norte do Brasil.

Se Britten não aponta culpa ou inocência, o linchamento do pescador faz a montagem refletir sobre temais atuais, como cultura do cancelamento e pós-verdade. “Há um impulso da comunidade em cancelar Grimes. Eu sou contra essa cultura, porque todos temos direito à redenção, a falar e a existir tal como somos. É aí onde está a tolerância, mas hoje precisamos estar dentro desse neopuritanismo, o que muito me choca”, diz Salazar.

Por quase três horas, o pescador tem seu nome gritado pela comunidade por quase 60 vezes. A turba repete, com insistência, a crença de que Grimes seria um assassino, como se espalhasse uma pós-verdade nos tribunais das redes sociais. O diretor não deixa de criticar outros tipos de puritanismo, como o personagem do pastor alcoólatra, que frequenta as casas de prostituição da Transamazônica e se entusiasma pela condenação do pescador.

Com o passar do tempo, parte da crítica considerou a opressão sofrida por Grimes como uma alegoria sobre a marginalidade da comunidade LGBTQIA+, da qual Britten fazia parte. Por isso, alguns classificam a tragédia como uma ópera gay. Salazar, porém, rechaça o rótulo.

“É claro que o libreto passa por essa questão, mas o drama tenta, em primeiro lugar, recuperar a infância. Eu diria que a ópera fala sobre como ser diferente, e aí pode entrar a questão da homossexualidade de Britten.”

O tenor Fernando Portari, de 54 anos, que viverá Grimes, diz ser preciso uma vida inteira para interpretar o pescador. Em sua avaliação, o papel não depende da técnica vocal do cantor, como em muitas óperas, mas requer maturidade emocional.
“É um personagem que nunca começa ou termina, é uma esfinge do ser humano, estando além do bem ou do mal. Britten não está preocupado com a moral da história, mas em pesquisar a alma humana. O mar é sempre maior do que nós”, ele diz.

O mar, aliás, funciona como o motor da ópera. Com regência de Luiz Fernando Malheiro, a orquestra mimetiza as tormentas do oceano e da mente do pescador. Na ópera, se destacam os “Quatro Interlúdios Marítimos”, que, de tão belos, são apresentados com frequência em concertos na forma de suíte. Ali, harpa e cordas controlam o movimento da maré, enquanto dois piccolos e duas flautas imitam a revoada dos pássaros.

A complexidade psicológica dos personagens de Britten são prova de seu diálogo com a literatura, algo reincidente em sua obra. Segundo Salazar, além do poema de Crabbe, a literatura está presente na ópera com a influência das parábolas bíblicas e no coro, que atua como nas tragédias gregas, reagindo a tudo o que acontece.
Do ponto de vista cênico, há a todo momento uma dualidade em “Peter Grimes”. O coro representa a comunidade julgadora, enquanto o pescador se mostra solitário no palco. “Na intimidade, todos temos um lado obscuro”, afirma Portari. “O mar que dá o peixe à comunidade é o mesmo que a afoga. E esse mar é a música.”

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