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Lei do ‘stalking’ completa 1 ano e começa a refletir em tribunais

O artigo passou a constar no Código Penal brasileiro há um ano e agora começa a ter reflexo nos tribunais do país.

Lei do 'stalking' completa 1 ano e começa a refletir em tribunais

É comum que o assédio comece por mensagens, redes sociais, email e vá se expandindo, criando um cerco em volta da vítima. — Foto:Shutterstock

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) — Primeiro, vieram as perguntas desconfortáveis sobre sua vida pessoal. Depois, as visitas ao mesmo comércio que costumava frequentar. Mais tarde, um mesmo carro insistia em passar lentamente em frente à sua casa. Por último, chegaram os buquês de flores acompanhados de bilhetes.

Foi o estopim para que Maria (o nome foi trocado) procurasse a Justiça do Espírito Santo para pedir que o colega de trabalho fosse obrigado a manter distância. Mas as medidas protetivas não evitaram mais um encontro indesejado, que levou o “stalker” a ter sua prisão preventiva decretada na última quarta-feira (30).

O crime impresso na sentença é o de “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.

O artigo passou a constar no Código Penal brasileiro há um ano e agora começa a ter reflexo nos tribunais do país. Existem hoje ao menos 1.276 processos judiciais do tipo, considerando apenas nove Tribunais de Justiça que forneceram dados à reportagem nos últimos três dias.

O delito, chamado de “perseguição” e popularizado pela expressão em inglês “stalking”, foi sancionado em 31 de março de 2021 pelo presidente Jair Bolsonaro (PL). Prevê pena de até dois anos de prisão, com possibilidade de aumento caso a vítima seja criança, adolescente, idosa ou mulher.

Na prática, a punição é revertida em medidas mais brandas e não é suficiente para prevenir os abusos, mas dá nome a um comportamento e até a um sentimento que antes ficavam no limbo.

“As clientes me procuravam e falavam: o que está acontecendo? Eu estou sendo vítima do quê? Hoje quando digo que é um crime, dá uma força, uma moral. Não é um azar que você deu”, diz a advogada Luciana Gerbovic, autora do livro “Stalking” (2017).

A diretora da ONG Safernet, que acolhe denúncias de delitos virtuais, concorda:

“Antes era só um ex causando problemas. Agora as vítimas e as pessoas de modo geral vão entender que isso é uma violência e é passível de denúncia”, diz Juliana Cunha.
São as mulheres as vítimas mais frequentes – apesar de não serem as únicas –, tanto pelo término de um relacionamento quanto pela rejeição ao seu início. O isolamento provocado pela pandemia também fez piorar muito a forma virtual do crime, segundo as especialistas.

É comum que o assédio comece por mensagens, redes sociais, email e vá se expandindo, criando um cerco em volta da vítima. No caso de um homem de 67 anos que foi preso preventivamente há cerca de um mês em Fortaleza, incluiu até recados no campo de comentários de transferências por Pix.

A importunação pode incluir ainda a busca de pessoas próximas ao convívio da vítima e aparições surpresa no local de moradia, trabalho ou estudo. Seja no ambiente físico ou digital, as consequências psicológicas são as mesmas, como ansiedade, medo, culpa e isolamento.

“Fiquei muito assustada quando comecei a estudar e vi os danos causados, e não falávamos muito sobre isso. A intenção é minar a vítima. Nos casos mais gritantes, ela muda de emprego, casa, nome, cidade, país. Você apaga toda a sua vida”, alerta Gerbovic.

Num processo que correu em Jaú do Tocantins (TO), por exemplo, a mulher chegou a tentar suicídio e a mudar de estado após as ameaças do ex-marido, com quem viveu uma relação conturbada por 14 anos. Ele foi condenado no mês passado e deve cumprir pena em regime aberto.

Assim como em outros crimes predominantemente cometidos contra mulheres, a subnotificação do “stalking” é comum. “A pessoa acha que não vai dar em nada, que vai ter que se expor de novo. Também é difícil mensurar os efeitos da lei porque não temos dados integrados de notificações ou punições”, lembra Cunha, da Safernet.

Os números colhidos pela reportagem variam bastante de estado para estado, o que pode indicar uma diferença na maneira de filtrar os dados.

Segundo o levantamento, os TJs que mais instauraram ações por perseguição foram os de Santa Catarina (325), Rio de Janeiro (304), Rio Grande do Sul (282) e Bahia (282). Em compensação, São Paulo só registrou 15 ações, e Minas Gerais, 2.

“Um ano ainda é muito pouco. Se eu fizer um boletim de ocorrência hoje, o agressor só vai ser ouvido daqui a três meses”, pondera a advogada criminalista Danyelle Galvão, que atende casos do tipo em São Paulo.

Antes de ser reconhecida como crime, a prática normalmente era enquadrada como ameaça (com prisão de um a seis meses) ou uma contravenção penal mais leve, por perturbação da tranquilidade da vítima (com detenção de 15 dias a dois meses), agora revogada.

Galvão explica que a Lei Maria da Penha também se encaixa em algumas situações, porém restritas a relações familiares. É possível ainda conseguir indenizações na esfera cível, por ter deixado o emprego ou custeado uma terapia, por exemplo.

Mas tem que haver um investimento paralelo em prevenção, elas defendem. “Dizer que a legislação vai prevenir os crimes é contrário a tudo que estudei. Não vai deixar de acontecer. O único efeito é possibilitar que seja apurado e punido”, afirma a criminalista.

Luciana Gerbovic destaca a importância de formar uma rede de apoio logo no início da perseguição, para fazê-la parar rápido. Ela exemplifica com o caso de uma cliente seguida por um vizinho, que só contou ao filho pelo que estava passando ao ver o sujeito esmurrar a porta. A dica foi avisar o porteiro, o síndico, convocar assembleia no prédio.

Juliana Cunha ressalta a necessidade de abordar as relações e violências de gênero especialmente nas escolas. “Quanto mais as mulheres sabem, melhor identificam e conseguem evitar que isso se desdobre em algo mais grave”, diz.

Colaborou Victoria Damasceno

O que fazer se for vítima de “stalking”?
Forme uma rede de apoio: relate a situação a amigos, familiares e outras pessoas que possam te ajudar
Não interaja com o(a) agressor(a): isso pode reforçar o comportamento dele(a)
Não divulgue dados pessoais: evite publicar telefone, endereço e local de trabalho ou estudo
Bloqueie o contato: evite que ele consiga te contatar e o denuncie às redes sociais
Guarde provas: tire “prints” ou grave todas as possíveis evidências da perseguição
Registre a ocorrência: o ideal é procurar uma delegacia especializada em crimes virtuais ou mulheres, se for esse o caso
Busque ajuda profissional: se achar necessário, procure um advogado, psicólogo ou serviços especializados como:
Disque 180 (Central de Atendimento à Mulher)
Site da ONG Safernet (canaldeajuda.org.br)
Casa da Mulher Brasileira (da Prefeitura de São Paulo)
Fontes: ONG Safernet e advogada Luciana Gerbovic, autora do livro “Stalking” (2017)

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