Demorou um pouco para que os paleontólogos Max Cardoso Langer e Jorge Ferigolo percebessem o potencial da brincadeira: um dinossauro do qual foram recuperados nada menos que 12 fêmures, todos da perna direita e nenhum da esquerda. Na hora de batizar a nova espécie, não tiveram dúvidas: Sacisaurus agudoensis é o nome da criatura, que está sendo apresentada ao público hoje e representa o primeiro registro no Brasil de uma das principais linhagens de dinossauro. De quebra, pode reforçar a idéia de que os dinos são um grupo de origem sul-americana.
É claro que, na vida real, o bicho não era um saci de verdade, esclarece Langer. A falta do fêmur esquerdo foi mero golpe de sorte no processo complicado e aleatório que leva à transformação de um osso em fóssil. Por algum motivo, a pata esquerda acabou se desintegrando. “Depois que a gente escolheu o nome teve gente que veio nos perguntar se o saci-pererê não tinha mesmo a perna esquerda. Parece que, na verdade, ele não tem a perna direita, mas não faz mal — afinal, o nome é uma brincadeira mesmo”, ri ele.
Piadas à parte, o comedor de plantas com tamanho estimado de 1,5 m adiciona uma peça muito esperada ao quebra-cabeças dos dinos brasileiros. Tudo indica que ele pertence ao grupo dos ornitísquios, o mesmo que daria origem a herbívoros gigantescos, como o Triceratops, com seus três chifres, ou Stegosaurus, dono de imensas placas nas costas. Acontece que o Sacisaurus está muito próximo da raiz dessa linhagem, tendo vivido há 220 milhões — uma época em que os dinossauros como um todo eram um grupo recém-chegado, tentando se firmar num mundo hostil.
Sangue gaúcho
Não é de hoje que dinossauros tão antigos quanto o Sacisaurus são encontrados nas rochas gaúchas do Triássico, como é conhecido o período geológico no qual ele viveu. No entanto, todas as criaturas encontradas antes no Brasil pertencem ao grupo dos saurísquios, o outro grande ramo da árvore genealógica desses bichos. É verdade que algumas pegadas preservadas em locais como a Paraíba e Araraquara (interior de SP) indicavam a presença de ornitísquios mais tarde, mas só fósseis poderiam confirmar de vez isso.
Os restos vêm da cidade de Agudo, na região central do Rio Grande do Sul, e vão de vértebras da cauda a pedaços dos quadris, do maxilar e da mandíbula. A mandíbula, aliás, é uma das chaves para o parentesco do bicho com os ornitísquios. Ela tem uma extremidade “banguela”, conhecida como osso pré-dentário, que apenas esse grupo possuía. Por outro lado, seu esqueleto é tão arcaico que ele ainda lembra os saurísquios em certos aspectos, como a posição do osso do púbis — voltado para a frente, e não para trás, como nos ornitísquios mais recentes.
Daí uma certa cautela de Langer, que é da USP de Ribeirão Preto, e de Ferigolo, da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, a respeito de como classificar o bicho. “A verdade é que você nunca tem 100% de certeza, mas eu o consideraria um ornitísquio”, afirma Langer. Se isso for verdade, o tal osso pré-dentário do Sacisaurus (que em vida estaria coberto por uma espécie de bico, estranhamente parecido com o de um papagaio) dá uma pista interessante de como os ornitísquios desenvolveram a estrutura. No fóssil gaúcho, ele é formado por duas partes, enquanto nos bichos mais recentes ele forma uma estrutura só — a qual, provavelmente, se fundiu ao longo da evolução do grupo.
A extremidade banguela, explica o paleontólogo da USP, provavelmente servia para estabilizar a ponta da mandíbula e ajudar o bicho a mastigar as plantas de que se alimentava. Dinossauros não tinham dentes especializados em triturar comida, como os molares dos mamíferos; assim, o pré-dentário permitia um certo movimento lateral na mastigação, permitindo algum grau de maceração dos vegetais antes que o bicho os engolisse.
Origem sul-americana
O S. agudoensis é mais um membro na lista de dinos muito primitivos que fazem muitos pesquisadores suspeitar de uma origem sul-americana para o grupo inteiro — em especial nas rochas de idades semelhantes compartilhadas entre o sul do Brasil e a Argentina. “O Sacisaurus apenas corrobora esses dados, que já são bastante fortes”, diz Langer.
Como na época os continentes do planeta inteiro estavam reunidos numa única grande massa de Terra conhecida como Pangéia (“terra inteira”, em grego), há gente que critica a idéia, dizendo que a aparente origem sul-americana poderia ser mero resultado do fato de que por aqui as rochas da idade certa foram preservadas, tendo sendo erodidas em outros continentes.
“Fica a pergunta: será que a região não tinha os animais ou simplesmente não tem as rochas? No caso da África, parece que é realmente o caso de não ter as rochas. Porém, em outros lugares, como a Índia ou os Estados Unidos, onde isso não acontece, não há nada de dinossauros, ou apenas cacos ínfimos — o que acaba nos levando de novo para a América do Sul”, afirma Langer.
O estudo descrevendo a nova espécie foi publicado on-line na revista científica “Historical Biology” e recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Fonte: Globo.com