Em uma festa de aniversário organizada aqui para o diretor Andrucha Waddington, cinco anos atrás, um dos convidados foi o produtor cinematográfico mais prolífico do Brasil, Luiz Carlos Barreto. Quando chegou o momento de dar os presentes, Barreto anunciou que o seu presente era uma idéia, ou, mais precisamente, uma imagem intrigante que, segundo sua convicção, Waddington seria de alguma forma capaz de transformar em um filme.
Enquanto visitava o seu estado natal no árido e paupérrimo nordeste do Brasil, Barreto viu uma impressionante fotografia de uma mulher idosa na soleira de um casebre frágil, rodeado por dunas. Essa imagem passou a assombrar Waddington também, e a partir dela nasceu o filme “Casa de Areia” (Brasil, 2005), a triste história de três gerações de mulheres que lutam contra a natureza e um sistema social rígido em um canto remoto do Brasil.
“Casa de Areia” (“House of Sand”, em inglês), que deverá estrear em Nova York e Los Angeles em 11 de agosto, estrela Fernanda Montenegro e Fernanda Torres como uma mãe e uma filha abandonadas em um cenário deserto, feito de dunas e de lagoas escuras, depois que o homem que as levou até lá sucumbiu ao ambiente hostil. Em uma das cenas iniciais, o cometa de Halley se destaca no céu noturno, em 1910, e o filme termina com notícias sobre o pouso da Apollo 11 na Lua, em 1969. Mas trechos extensos do filme parecem não estar conectados à dimensão temporal, transcorrendo em um local que lembra mais o Deserto do Saara do que o Brasil, e marcados por poucos diálogos.
“Para mim, o processo de filmagem é algo intuitivo, e não racional, de forma que a inspiração pode vir de qualquer lugar”, afirmou Waddington. “Neste caso, tive que criar todo um universo a partir do nada. É como se essas duas mulheres estivessem vivendo na Lua e sequer soubessem disso.”
Tanto para o diretor quanto para as duas principais atrizes, que fazem cinco papéis diferentes, a produção do filme consistiu também em uma relação familiar. Na vida real, Montenegro e Torres são mãe e filha, e Torres é casada com Waddington, que escreveu os papéis principais especificamente para “as Fernandas”, como ele as chama afetuosamente, a fim de realizar um antigo desejo por parte dos três de trabalharem juntos.
Waddington poderia não ter sido uma escolha natural para transformar uma imagem instantânea em um filme. Ele tinha apenas 31 anos de idade, e só havia produzido dois longas-metragens quando Barreto o abordou. Mas Barreto ficou impressionado ao assistir “Eu Tu Eles” (Brasil, 2000), a comédia de Waddington bem recebida pela crítica a respeito de uma camponesa e os seus três maridos.
“Eis aqui este garoto urbano de olhos azuis, um produto do Rio, descendente de imigrantes russos e ingleses, mas que, mesmo assim, entende tão bem o Nordeste”, disse Barreto. “Ele revelou uma sensibilidade e uma consciência genuínas.”
No entanto, inicialmente Waddington titubeou para aceitar o presente de aniversário de Barreto, já que tinha outros projetos em mente, incluindo documentários sobre a música brasileira, assim como longas-metragens. Mas Waddington tinha visto a adaptação japonesa para as telas, de 1964, do romance de Kobo Abe, “Mulher das Dunas”, duas semanas antes, e, naquela noite, quando foi dormir, o seu inconsciente passou a trabalhar.
“Tive um sonho, e nele misturei imagens de ‘Mulher nas Dunas’ com aquilo que Barreto me tinha dito”, relembra Waddington. “Quando acordei na manhã seguinte, a primeira coisa que fiz foi telefonar para ele e dizer-lhe: ‘Tenho que fazer o filme’. Passamos seis horas juntos na sua casa naquele primeiro dia, amadurecendo a idéia, e no decorrer do ano seguinte escrevemos um roteiro com Elena Soarez” (colaboradora de Waddington em “Eu Tu Eles”).
Apesar dos laços familiares, “as Fernandas” não se comprometeram imediatamente com o filme. Com a participação delas, o roteiro passou por mudanças substanciais: a personagem de Torres, Aurea, por exemplo, foi originalmente imaginada como a mulher, e não a filha, de Vasco, o aventureiro português, interpretado pelo diretor Ruy Guerra, que leva as mulheres para a região deserta.
As filmagens tiveram início em 2004 na área desolada conhecida como Lençóis Maranhenses, na costa do norte do Brasil, a quase seis horas por estrada da cidade mais próxima, e duraram dois meses. A fim de lidar com o elenco, a equipe de produção e os atrasos provocados por tempestades de areia, Waddington patrocinou a construção de dois hotéis e um restaurante nas imediações de uma vila próxima de pescadores, um feito notável para um orçamento de US$ 3,3 milhões. “A produção do filme espelhou a história narrada por ele, de forma que nunca foi possível dissociar as duas coisas”, explica Torres. “Andrucha é Vasco, que leva a mulher e a sogra para o deserto. Me senti bastante como a minha personagem, claustrofóbica, e a minha mãe também. Como estávamos filmando em ordem cronológica, creio que é possível enxergar este fato refletido nas performances.”
Aos 76 anos, Montenegro é a grande dama entre as atrizes brasileiras, sendo muitas vezes comparada a Anna Magnani e a Katharine Hepburn. Embora tenha sido indicada para o Oscar de melhor atriz em 1999, pelo seu papel em “Central do Brasil” (Brasil, 1998), e tenha atuado em dezenas de peças teatrais e novelas de televisão no seu país, ela diz que “Casa de Areia” foi um dos papéis mais desafiadores e satisfatórios com os quais se deparou.
“Como não temos uma indústria cinematográfica de verdade por aqui, e como nada esperamos do cinema, quando surge um bom papel, nós o seguramos como um glutão pega um pedacinho de uma guloseima”, diz ela. “Tive que interpretar três personagens diferentes com cinco idades diferentes entre 60 e 90 anos, em um filme que é lunar, misterioso e feminino.”
Torres, por sua vez, mostrou ser talvez a mais versátil atriz brasileira da sua geração. Atualmente com 40 anos, ela ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema de Cannes, em 1986, pelo seu papel em “Eu Sei que Vou te Amar”, estrelou recentemente uma famosa série da televisão brasileira, “Os Normais”, e acaba de concluir uma interpretação teatral da peça erótica de João Ubaldo Ribeiro, “A Casa dos Budas Ditosos”.
Mãe e filha já atuaram juntas antes, primeiro em 1992, em Nova York, no Lincoln Center, em “Flash and Crash Days”, peça dirigida pelo ex-marido de Torres, Gerald Thomas, e mais recentemente em uma produção no Rio de Janeiro de “Gaivota”, de Tchekov. Mas “Casa de Areia” foi a primeira oportunidade para que elas fizessem um filme juntas.
“Sempre que trabalhamos juntas, é com uma sensação de tranqüilidade e harmonia, sem competição destrutiva”, explica Montenegro. “Fernanda sempre diz que aprende comigo, mas o inverso também ocorre, porque ela tem uma objetividade e uma capacidade de decisão que eu não tenho.”
Lançado no ano passado, “Casa de Areia” foi elogiado pelos críticos, que ficaram especialmente impressionados pela beleza visual chocante do filme. Mas as platéias brasileiras aparentemente acharam o filme demasiadamente denso, e ele não fez sucesso nas bilheterias.
“Estávamos meio fora de moda”, admite Torres. “O público que vai hoje em dia ao cinema parece querer ação, e esse filme é como um retorno aos anos 60 ou 70, no sentido de que ele é poético e não tem 50 cortes em uma cena. Ele traz uma reflexão sobre a natureza e o significado da condição humana, além de sobre a indiferença da natureza pela nossa passagem por este mundo.”
No entanto, no exterior “Casa de Areia” ganhou o Prêmio Alfred P. Sloan, de US$ 20 mil, no Festival Sundance deste ano, por ter mostrado a ciência e os cientistas. Isso se deveu a um trecho do filme no qual o isolamento das mulheres é rompido temporariamente pela chegada inesperada de uma expedição de 1919 que veio para fazer medições astronômicas a fim de verificar se a teoria da relatividade de Einstein era correta.
“Na nossa pesquisa, descobrimos que houve realmente tal expedição, embora ela tenha ocorrido a 190 quilômetros do local em que filmamos”, conta Waddington. “Para mim foi útil o fato de o único contato das mulheres com a civilização ter ocorrido por meio do céu, de forma que havia alguma forma de relacionar as suas vidas com aquilo que estava ocorrendo no resto do mundo.”
“Casa de Areia” também aborda as questões de classe social, sexo e raça no Brasil. Os únicos vizinhos das duas mulheres são moradores de um quilombo, uma comunidade de escravos fugidos cujo líder taciturno é interpretado por Seu Jorge, o cantor popular que chamou atenção pela primeira vez em “Cidade de Deus” (Brasil, 2002) e que também participou de “A Vida Marinha com Steve Zissou” (“The Life Aquatic with Steve Zissou”, EUA, 2005).
“Este filme é muito brasileiro, mas talvez diferente daquilo que os estrangeiros costumam pensar que o Brasil é: somente samba, favelas e violência”, explica Montenegro. “É um filme muito especial e sensível, no qual a natureza preenche a tela, e, com sorte, a consciência dos expectadores, assim como fez com os nossos personagens.”
Fonte: Uol, por Larry Rohter
História de “Casa de Areia” começou com uma fotografia
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