Casos como o que ocorreu em Santo André, que resultou na morte da garota Eloá Cristina Pimentel, de 15 anos, após ter sido feita refém durante cem horas pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves, de 22, mostram "a nossa morbidez, a nossa monstruosidade" na opinião do terapeuta familiar Paulo Fernando Pereira de Souza, 41 anos.
Eloá morreu no hospital depois de passar por cirurgias para a retirada de uma bala na cabeça. O seqüestro só acabou depois que a polícia invadiu o apartamento. Na ação, a amiga de Eloá, Nayara Rodrigues, de 15 anos, também saiu ferida. Lindemberg foi preso.
O terapeuta Paulo Fernando é formado pela USP. Trabalhou por mais de dez anos como psicólogo judiciário e, atualmente, faz pós-graduação na PUC-SP estudando a identidade de homens atendidos por políticas sociais na periferia de São Paulo.
Para ele, casos como este não são comuns. Durante os anos em que atuou no Judiciário, afirma nunca ter se deparado com casos de seqüestro por questões afetivas: "Acompanhei, sim, casos de homens que mataram companheiras", diz. "É comum, e isso a gente acompanha mesmo no consultório, as barras das relações afetivas serem forçadas até o limite, com ameaças de morte ou de suicídio".
Ainda sobre o caso, Paulo Fernando diz se espantar "que ninguém tenha vergonha de ver Lindemberg sair sem ferimentos aparentes da cena e depois aparecer com sinais de ter sido espancado, já sob custódia do Estado". Leia abaixo a entrevista completa.
UOL – Qual a sua avaliação geral do caso?
Paulo Fernando Pereira de Souza – O que me parece mais importante é observar como emerge nesses momentos uma morbidez, um "lado negro" que queremos esconder, em todos os atores. Ele está tanto em quem comete o ato quanto em quem assiste e quem comercializa a situação. Lindemberg torna-se "monstruoso", vemos os pais de Isabela Nardoni como "monstros", mas essa atenção exagerada a essas casos mostra a nossa morbidez, a nossa monstruosidade.
UOL – Você está se referindo à cobertura da mídia.
Pereira de Souza – Também, a essa redução de tudo ao espetáculo. Há um ditado que diz que as crianças jogam pedra no gato de brincadeira, mas os gatos levam as pedradas a sério. A cobertura da televisão, que entrevista ao vivo o seqüestrador, faz parecer que tudo é uma ficção, mas há vidas em jogo. Essa cobertura pode favorecer, inclusive, o surgimento de novos seqüestros, de pessoas querendo aparecer na televisão também.
UOL – É possível entender por que fatos assim ocorrem?
Pereira de Souza – Fatos assim não são explicáveis por especialistas, muito menos sem contato com o próprio assassino. Não há nada que explique o que ele fez. Sim, Lindemberg teve um comportamento fora do normal, mas qualquer leigo pode dizer isso. Alguém pode dizer que ele estava enlouquecido, mas há muitos loucos que jamais fariam o que ele fez. Essa tentativa de classificar o comportamento dele expressa o desejo de controlar alguma coisa que é, em si, incontrolável. Não há nada que o explique, muito menos que o justifique.
UOL – E por que o interesse por esses assuntos, pela imprensa e pelo público, se repete em novos casos?
Pereira de Souza – A morbidez de que falei incomoda, mas também atrai. Por isso que ela vende, caso contrário as pessoas não comprariam. É como um acidente de carro: todo mundo diminui a velocidade para ver o que aconteceu. Pode ser até que, por alguns quilômetros, a pessoa passe a dirigir com mais cuidado, por conta do abalo. Mas o fato é que é mais fácil ver um cisco no olho do outro do que uma trava no próprio. Você critica no outro como se fosse um observador imparcial. Mas não há uma posição neutra.
UOL – Sobre a relação entre os dois, como você avalia o fato de ele ser um jovem adulto e ela uma adolescente?
Pereira de Souza – Lindemberg tem 22 anos, e Eloá, 15. Quando eles começaram a namorar, ela tinha 12 anos. Um homem mais velho tem com uma menina mais nova uma posição de superioridade. Uma menina de 15 anos é em geral mais madura que um de 15, mas um de 22 anos deveria ser mais maduro. Ocorre que vivemos num mundo em que os adolescentes se parecem cada vez mais adultos, e os jovens adultos parecem cada vez mais adolescentes. A rigor, uma relação sexual de um maior de 18 com uma menor é ilegal. Há uma disparidade de poder entre os dois. Mas isso é naturalizado, como se fosse normal. Mas é falso pensar que a menina de 15 anos responde sozinha por ela.
UOL – O que esse caso nos diz sobre a relação atual entre homens e mulheres?
Pereira de Souza – Nesse ponto de vista, a situação é a mais tradicional possível. Há uma tentativa de dominação clara da mulher pelo homem. Mas não se pode dizer que seja um caso emblemático. Na novela "A Favorita", Leonardo, persoangem de Jackson Antunes, espanca a mulher que quer trabalhar fora. Tempos atrás, ele seria um personagem que contaria com simpatia de uma parte do público. Hoje, não mais, ele é caricato. Houve um deslocamento no lugar do poder do homem. Não é mais "legítimo", não é mais aceitável, não há mais complacência com quem espanca ou mata a mulher.
UOL – Você acompanhou casos semelhantes como psicólogo judiciário?
Pereira de Souza – Acompanhei casos de homens que mataram companheiras, mas não em situação parecida. Acho que elas não são tão comuns assim. É comum, e isso a gente acompanha mesmo no consultório, as "barras" das relações afetivas serem forçadas até o limite, com ameaças de morte ou de suicídio. O suicídio, por vezes, tem o mesmo sentido da ameaça de morte, ou seja, a de estragar a vida do outro. Isso aparece de forma real e como fantasia. Mas uma coisa é pensar e a outra é fazer. Há uma linha tênue entre uma coisa e outra, mas passar de uma à outra é raro. Nesse sentido, a facilidade de obter uma arma e a situação podem fazer toda a diferença.
UOL – No UOL, a psicóloga Rosely Sayão diz achar preocupante o fato de "nem os policiais (civis e militares, que entraram em confronto na frente do Palácio dos Bandeirantes) nem o seqüestrador demostraram sentir vergonha de seus atos". O que você acha dessa afirmação?
Pereira de Souza – Concordo plenamente. Para que alguém se exiba, é preciso platéia. E eles se sentem como personagens de um espetáculo. Do mesmo modo, me espanta que ninguém tenha vergonha de ver Lindemberg sair sem ferimentos aparentes da cena e depois aparecer com sinais de ter sido espancado, já sob custódia do Estado. E ninguém fala nada. A polícia pode até achar que fez o melhor que pode, mas não dá para se sentir orgulhosa do resultado. Foi um fracasso. Também não imagino que uma emissora saia comemorando o furo jornalístico de entrevistar Lindemberg durante o seqüestro, porque é a história de uma tragédia.
A única parte meritória é a doação de órgãos, de resto também explorada como espetáculo pela mídia. Desse "monte de merda" brota uma humanidade, um ponto de luz, um momento em que a ação não é voltada para o próprio umbigo, e a gente percebe quantas pessoas, tão distantes umas das outras, são tocadas pela história.
UOL – E como você vê o surgimento de uma história paralela, a do pai da Eloá, procurado pela polícia de Alagoas?
Pereira de Souza – A gente ainda pensa em roteiro de filme de bangue-bangue, de filme de Hollywood de antigamente. Como se o fato de ele ter sofrido um mal significasse que ele tem de estar do lado dos bons, não incorporamos ainda a idéia de personagens ambíguos. O que tem de surpreendente nessa história é a presença de um pai supostamente poderoso e armado, se ele foi mesmo um membro de um grupo de extermínio, como diz a polícia, ser tão complacente diante da idéia de um homem mais velho namorar uma menina de 15 anos, o que contradiz o modelo patriarcal. Ele foi incapaz de proteger a filha.
Fonte: UOL