Quase seis da noite de uma quarta-feira. Rio de Janeiro, alto do Vidigal. Assistir ao pôr-do-sol é de tirar o fôlego, tanto quanto pular entre uma laje e outra para fazer a foto certa: o menino, o morro e o mar.
O legítimo cenário carioca é casa e trajeto diário do ator Thiago Martins, de 22 anos, agora mais conhecido como Vinícius, um dos vilões de “Insensato coração”.
— Sofro ao ler as cenas e pensar nas maldades que ele vai fazer. Na hora de interpretá-lo, me entrego, sou visceral. Viro ele. Um mau-caráter diferente do Léo (Gabriel Braga Nunes), que planeja, faz artimanhas, pensa alto, tem objetivos. Vinícius tem tantos irmãos aí pelo mundo… Caras que fazem besteira sem pensar, só por fazer, por nem se darem conta do coração ruim que têm. É diferente de tudo o que já fiz — analisa.
Exatamente uma exceção. Numa conta com mais de dez personagens na TV e no cinema, Thiago quase sempre emprestou um pouco dele mesmo aos seus papéis. O Dé, do longa “Era uma vez” (2008), jovem morador de uma favela próxima à zona nobre do Rio, talvez seja o mais fidedigno deles.
De cara, dá para ler nele o moço tímido, extremamente gentil — daqueles que oferecem a mão à repórter para percorrer as ingremidades da favela — e que, ao mesmo tempo em que comemora o sucesso de seu personagem, sofre com as maldades do playboyzinho nada incomum.
— Posso pegar um carona até a Barra? Vou buscar meu carro numa concessionária por lá e depois encontrar com a turma da pelada — justifica, com mansidão na voz, mas olhos tão audíveis e inquietos quanto o trânsito de mil buzinas que aguardaria na Avenida Niemeyer.
— Moro ali com o meu irmão e a minha mãe — avisa ele, na descida do morro, e já antecipando a resposta da pergunta óbvia: — Não quis sair daqui, foi onde cresci. Quando pude, comprei um apê pra minha mãe na parte baixa da comunidade. Era só o que eu queria no fim das contas… Dar conforto à dona Maria Lúcia, que, sozinha, criou nós dois. Isso é sangue nordestino, paraibano! Ela sempre trabalhou como babá, hoje eu quero que minha mãe seja dondoca. Meu pai e ela se separam quando éramos pequenos, e só voltei a ter proximidade com ele há uns dois anos.
Bom moço só longe da TV
Já na novela das 21h, o ar de bom moço ficou para trás nos primeiros capítulos. Vinícius prometia romance com Alice (Paloma Bernardi), mas acabou traindo a namorada, depois de fazer muita pressão para transar sem camisinha com a moça. Mais tarde, quando descobriu que ele era filho de um pai rico, assumiu um jeito revoltado, revelou um caráter duvidoso, roubou dinheiro da família e planejou o término do namoro de Cecília (Giovanna Lancellotti). Mas nada perto do que se ensaia para os próximos dias, quando o jovem inconsequente dará lugar a um criminoso de verdade. Vinícius cutucará uma ferida real e mais aberta do que nunca: a homofobia.
— Ele está finalmente mostrando a que veio. Só eu sei a emoção que sinto ao viver cada cena do personagem. Apesar de fazer um vilão, a reação das pessoas nas ruas tem sido incrível. É muito bom quando um trabalho nosso não significa apenas entretenimento, mas assume uma causa social — afirma, quase deixando a mansidão de lado — Quanta ignorância é alguém agredir o outro por preconceito, por não aceitar as escolhas e respeitar o espaço de cada um! Isso está acontecendo toda hora! A Justiça demora para cumprir a lei como deveria ser e, assim, um monte de gente vai ficando impune.
O tema ganhou uma proporção tão séria que, na última semana da novela, o estudante de direito pode chegar a assassinar a tiros o casal gay formado por Eduardo (Rodrigo Andrade) e Hugo (Marcos Damigo). Desfecho para chocar brasileiros que vêm acompanhando uma ficção cada vez mais afinada com as chamadas do “Jornal Nacional”. As falas da cena, aliás, fariam jus também ao tom de realidade e violência que o nosso cinema tem reproduzido, há cerca de dez anos, em telas de 400 polegadas… “Veado bom é veado morto” é a frase que o personagem dirá, caso o capítulo vá mesmo ao ar.
— Pesado este desfecho. Ainda não li os capítulos finais… Mas do autor podemos esperar tudo.
Na carreira de Thiago, Vinícius tem o peso de ser anti-herói numa trama de Gilberto Braga, mas está bem longe de ser seu primeiro grande desafio. Aos 6 anos, o carioca começou a estudar teatro no grupo Nós do Morro, o mesmo que revelou nomes como Jonathan Haagensen, Marcello Melo Jr. e Roberta Rodrigues, em duas décadas de trabalhos dentro do Vidigal.
— Meu irmão, Carlos André, é meu pai, meu amigo, meu tudo. Junto com a minha mãe, é o meu São Jorge. Foi ele que me deu força para entrar no grupo, mas disse que eu teria que levar aquilo a sério — lembra, explicando o que isto significaria na realidade em que viviam: — Foi o jeito que ele encontrou para me manter longe das drogas, dos becos, das armas. Foi o Carlos que me falou sobre sexo, sobre escolhas, sobre dinheiro, sobre o certo e o errado. Até hoje é a ele que peço conselhos.
O incentivo quase despretensioso do irmão, hoje produtor teatral, resultou numa coleção de trabalhos e numa trajetória sólida: o filme “Cidade de Deus” (2002); a participação na série “Cidade dos homens” (no mesmo ano); e a estreia em novelas — depois de ter sido indicado pela atriz Giovanna Antonelli, com quem havia contracenado no longa “Maria, mãe do filho de Deus” (2003) — para viver o Sal, de “Da cor do pecado” (também em 2003). Em 2005, ganhou mais olhares do público nas ruas, graças ao personagem Tadeu, um papel de destaque em “Belíssima”, novela de Silvio de Abreu.
Para Thiago, esse foi um dos “pulos de gato” que o flamenguista deu na vida:
— Tadeu me proporcionou uma relação muito bacana com Claudia Abreu, Tony Ramos… Ficamos amigos. E ainda aprendi tanto!
Por causa da fama daquele momento, Thiago foi rejeitado em sete testes para fazer o filme “Era uma vez”, dirigido por Breno Silveira.
— Breno não queria um ator conhecido, preferia que um negro assumisse o papel. Mas era o “meu” filme, a “minha” história. Dé era um cara trabalhador, honesto, que sonhava feito eu. Aí, liguei para o Breno pela oitava vez e pedi: “Deixa eu fazer um último teste?”. Ouvi em resposta um “Vem aí!”. Fiquei das 8h às 5h da tarde na praia, pegando sol, até quase a pele descascar, todo ardendo, mal mesmo. O teste era no outro dia. Coloquei a minha roupa mais larga e raspei o cabelo, fazendo uns desenhos. Lembro a reação do Breno como se fosse hoje: “Meu Deus do céu! O que é que você fez, menino?!”.
No mesmo dia, o carioca precisou ser operado, por causa de uma apendicite… 48 horas depois recebeu ‘’O’’ telefonema:
— O papel era meu. Ainda estava internado e gritava que nem um maluco no hospital, mesmo não podendo fazer esforço. As enfermeiras ficaram desesperadas comigo!
Dé morava no Cantagalo, em Ipanema. Filho de empregada doméstica e abandonado pelo pai, viu um irmão ser assassinado e o outro ser preso injustamente. Trabalhava vendendo cachorro-quente na praia, onde conheceu Nina (Vitória Frate), filha rica da famosa Vieira Souto. Como “Romeu e Julieta” em tempos de um Rio com violência e tráfico, a riqueza de Ipanema e a simplicidade do Cantagalo se apaixonaram e criaram guerra.
— Já namorei uma menina do Leblon, que nem podia entrar aqui na comunidade. Uma vez, ela sumiu de casa por dois dias, viajou escondida dos pais. A mãe achou que tinha sido eu quem havia pego a menina. O mesmo que acontecia no filme. Dá para acreditar?!
Mas aí vieram outras namoradas. Roberta Rodrigues e Fernanda Paes Leme, ambas no elenco de “Insensato coração”, foram as mais recentes:
— Namorei um ano e meio cada uma. A Roberta é daqui do Vidigal, tem uma história parecida com a minha. A Fê — com quem estava até o final de 2009 — vinha aqui, convivia com a minha mãe. Adoro namorar. Adoro mulher! Adoro ficar em casa vendo filme juntinho.
Ele não admite, mas também deve adorar o assédio que, feito uma tsunami calma entre Leblon e São Conrado, a fama arrastou. Como adora música, e faz sucesso cantando no Trio Ternura; adora praia, Johnny Depp, calça larga, corrente no pescoço com pingente de caveira. Adora teatro, churrasco com os amigos e, claro, adora futebol! Marcado com a turma lá na Barra, de noitinha, depois da entrevista.
— Valeu pela carona! — despediu-se, de mochila nas costas, misturando-se com o trânsito e os muitos Dés, Vinícius, mas poucos Thiagos que existem por aí.