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Casal de pastoras reúne milhares de evangélicos homossexuais em cultos

ssim, os sodomitas, tais como os ladrões e tantos outros criminosos listados na Bíblia, não herdariam o reino dos céus

Casal de pastoras reúne milhares de evangélicos homossexuais em cultos

Diz a tradição cristã que enxurradas de enxofre e labaredas de fogo caíram do céu no dia em que Deus destruiu as cidades de Sodoma e Gomorra e matou todos os seus habitantes. Esse teria sido o castigo divino pelos pecados que os cidadãos tinham cometido: assassinato de crianças e idosos, estupros e sexo grupal entre homens. Assim, os sodomitas, tais como os ladrões e tantos outros criminosos listados na Bíblia, não herdariam o reino dos céus.

A história é repetida à exaustão hoje em templos evangélicos como a prova de que Deus condena os homossexuais. Programas de televisão pentecostais defendem a “cura gay” apoiados nessa passagem do texto bíblico e defendem que reverter a sexualidade não só é possível como necessário para evitar o encontro com o Diabo. “A verdade é que ninguém quer ir pro inferno”, diz Lanna Holder, 40 anos, sete dos quais passou defendendo essa tese.

Em 1996, aos 21 anos, ela entrou para a Assembleia de Deus, a maior organização evangélica do Brasil, em busca de solução para dois problemas que considerava graves: o uso de drogas (Lanna cheirava cocaína, fumava maconha e bebia muito) e a atração por meninas. O primeiro ela solucionou depois de um só culto. Já o segundo, descobriu ser mais difícil.

   
Por anos, tentou afastar o “pecado”, evitou manter amizade com mulheres e usou a própria história de “ex-lésbica” para convencer outros gays de que era possível mudar. Até que entendeu que estava mentindo para si mesma: podia largar as drogas, mas não algo que nascera com ela.

Hoje, Lanna é diretora da igreja inclusiva que mais cresce no país. Tem a seu lado a mulher, a cantora Rosania Rocha, 41 anos, que também lutou por anos contra a própria natureza. Criada em 2011, a Comunidade Cidade de Refúgio é fruto da história de amor das duas pastoras e já possui quatro filiais além da sede, no Centro de São Paulo, onde os cultos dominicais extrapolam a lotação máxima de 300 fiéis – quase todos gays. Este ano, um novo templo, com capacidade para 2 mil pessoas, será inaugurado.

AMOR IMPOSSÍVEL
A sintonia das duas é antiga e teve início 12 anos atrás, em Boston, nos Estados Unidos. Rosania, então com 29 anos, morava na cidade com o marido e o filho pequeno. Cantava em igrejas da comunidade latina e tinha alguns discos gravados. Era uma estrela em ascensão no mundo gospel.

Enquanto isso, no Brasil, Lanna se tornava conhecida pela “cura” de sua homossexualidade. Era casada com outro pastor e também tinha um filho. Sua história lotava cultos e ela viajava cada vez mais longe para contá-la. Assim chegou a Boston, onde faria uma rodada de pregação. Elas ainda não se conheciam, mas Rosania havia sido escalada para cantar na ocasião. Quando se viram, a atração foi imediata.

Para Lanna, a convivência era novidade. “Não tinha amigas. Por causa do meu passado, evitava ter”, diz. Durante seis meses, elas viajaram pelos Estados Unidos a convite de diferentes templos. Lanna pregando e Rosania cantando.

“Um dia, paramos na estrada e o pessoal foi comprar um vinho. Ficamos a sós. Eu estava confusa, mas tinha liberdade com Lanna e decidi falar: ‘Acho que estou gostando de você de um jeito diferente'”, lembra Rosania. A resposta foi rápida: “A recíproca é verdadeira”. No hotel onde o grupo se hospedou, elas dividiram uma das camas de casal (“A gente não fazia nada naquela época”, se apressa em explicar a cantora). “Mas não conseguimos dormir. Ficamos nos olhando, sem saber o que fazer.”

ESCÂNDALO E DIVÓRCIO

Casadas com homens e apaixonadas uma pela outra, as duas amigas decidiram apelar para Deus. “Choramos e oramos. A nossa primeira ideia foi fugir daquele sentimento”, conta Rosania. Não deu certo. Por mais que rezassem, a atração foi maior. Poucos dias depois, beijaram-se pela primeira vez, e aí foi difícil parar. O caso cheio de culpa durou seis meses, ao fim dos quais decidiram pedir ajuda. Sentaram os dois maridos à mesma mesa e, juntas, confessaram tudo.

Eles esbravejaram e se indignaram. Só não houve mais xingamentos por causa da postura religiosa dos dois. “Reagiram como maridos traídos”, diz Lanna. O segundo passo foi falar com os superiores da igreja, e aí a história foi escancarada. Os pastores as orientaram a lidar com o caso em segredo mas, no dia seguinte, a comunidade inteira já sabia. “Minha caixa de e-mails estava lotada, o telefone não parava de tocar”, conta Rosania.

O plano dos religiosos foi separá-las. Rosania mudou-se para Connecticut, numa operação “resgate de casamento”, e Lanna retornou ao Brasil, onde radicalizou: decidiu pedir o divórcio e se desligar da igreja.

Sem a renda da congregação, no entanto, ela voltou para os Estados Unidos endividada e com o filho pequeno no colo. Lá trabalhou como entregadora de pizza, pintora e pedreira. Estava afastada de Rosania, que ainda acreditava na cura gay, e da religião, pois já não queria mais mentir. “Tinha perdido a esperança de mudar. Deus tinha transformado tudo o que podia, menos essa parte, que era (e é) minha natureza.”

“Deus tinha transformado tudo o que podia, menos essa parte, que era (e é) minha natureza” Lanna Holder, pastora

Sete meses se passaram antes que Rosania recebesse notícias dela por uma amiga. “Lanna tinha voltado a beber, estava na balada e ficava com umas dez meninas ao mesmo tempo”, conta a cantora. “Fiquei brava. Estava fazendo tudo certinho, e ela tinha voltado pra bagunça.”

Enciumada, mesmo sem vê-la havia meses, dirigiu até Massachusetts, onde Lanna morava, e foi confrontá-la. O reencontro acendeu de novo a paixão e, a partir de então, passaram a se ver com frequência. Rosania ainda era casada e tentava manter a família unida, mas não conseguia evitar Lanna. Em dias alternados, elas dirigiam até quatro horas para se encontrar, às vezes no meio do caminho.

Num desses encontros, tudo mudou outra vez. “Havia deixado Rosania na casa dela e estava na estrada quando dormi no volante. O carro despencou de um barranco e quase morri. Quebrei quatro costelas, os ossos perfuraram meu fígado, meu pulmão foi esmagado e o fêmur, deslocado da bacia.”

Lanna acordou do coma três dias depois, ainda sob risco de morte, e encontrou à sua volta o ex-marido e outras pessoas da igreja. A grande culpada, diziam, era Rosania. Um castigo dos céus. Para piorar, um religioso trazia um suposto recado divino: se quisesse sobreviver às cirurgias (seriam nove no total), ela deveria cortar todos os laços com a amante.

Agito na porta da igreja, no Centro de São Paulo (Foto: Lalo de Almeida / Marie Claire)

EMBATE COM O PASTOR
Dias depois, quando já conseguia andar, Lanna viu que uma das visitas deixara o celular perto da cama. Pegou o aparelho, correu para o corredor e telefonou para Rosania. Ao contrário da profecia do pastor, ela melhorou quando a amada chegou.


Lanna voltou mais uma vez ao Brasil e começou a pregar em igrejas tradicionais. Rosania deu entrada no divórcio e, dois anos depois, desembarcou em São Paulo. O filho ficou nos Estados Unidos com o pai (hoje, passa as férias com a mãe). Estavam finalmente juntas, vivendo como um casal na mesma casa, e com um projeto em mente.

“Nossos amigos gays haviam se afastado da igreja e nos pediam para cantar hinos, recitar a palavra”, lembra Rosania. Ninguém podia saber – muito menos as congregações que contratavam Lanna -, mas elas pretendiam criar uma igreja dedicada a gays e lésbicas.

Em 2011, erguida com as economias de ambas, surgiu a Comunidade Cidade de Refúgio – no mesmo período em que o casamento gay passou a ser legal no Brasil e elas viraram esposas pela lei. Havia cerca de 200 pessoas na inauguração.

Desde então, o número se multiplica exponencialmente (três anos depois, a quantidade de fiéis – vários com histórias parecidas com a do casal – já é dez vezes maior). Tanto que, no culto, a voz de Lanna se dirige às muitas pessoas no salão da igreja, mas não só. Há fiéis que acompanham ao vivo pela internet, no interior do país, em Portugal, nos Estados Unidos e no Japão. A lista dos locais conectados é lida a cada domingo, um jeito de aproximar o público online da sede, na Avenida São João.

Lá, um telão instalado no subsolo leva a imagem da pastora aos que não couberam no salão principal. De um espaço improvisado, cheio de gente com vontade de se tornar visível, surgem vozes guturais, sufocadas. Juntas, as fiéis gritam: “Aleluia!”.

*A íntegra da reportagem está na edição de fevereiro de Marie Claire.

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